O QUE O PAPAI NOS ENSINOU

Created by Sandra 9 years ago
O papai, desde que éramos pequenos, sempre dizia que os irmão tinham que ser amigos e ajudar uns aos outros. Ele dizia que as matérias mais importantes para estudar e saber eram o português, a matemática, aprender bem inglês e computaçāo. Nunca me esqueço de umas férias de verão que ele contratou um professor de estatística, comprou cadernos para fazermos cópias em português e nos inscreveu num curso de computação, na época o TK80. No final das férias, ele distribuiu um questionário para nós três para avaliar nossas reações e aprendizado. A única vantagem da aula de estática era que o professor era um gato. Quem me conhece e lembra da minha adolescência nem precisa adivinhar que minhas respostas foram atravessadas, a típica adolescente rebelde. E hoje em dia tento por um pouco em prática com meu filho a importância de estudar essas mesmas matérias. Como a vida e as visões mudam! Uma outra coisa que o papai demandava da gente para ganhar mesada era fazer uma planilha estimando o custo do que precisávamos e as razões. Quando a gente queria aumento ele nos pedia para atualizar a planilha e apresentar a justificativa. Nos ensinou a administrar nossas contas bancárias desde cedo e todo ano chamava um filho para ajudar com o imposto de renda. Lembro que o Alexandre era o que mais contribuía. Naquela época tínhamos que fazer as planilhas à māo para cada gasto, por exemplo, gasto com seguro saúde de cada mês. Me lembro que uma vez eu resolvi fazer a soma total e não colocar ponto por ponto na planilha; eu queria sair, ir ao clube fazer ginástica e estava sem paciência. Ele não aceitou de jeito nenhum e fez eu refazer a planilha. Acho que naquela época eu tinha muita energia, além disso sempre fui a filha mais direta e falava tudo, sem fazer média. O Alexandre tinha jogo de cintura e a Carol dava uma de diplomata. Os meus irmãos vāo dizer que eu batia de frente com o papai. Além do papai ter sido muito preocupado com nossa educação, ele achava que as mulheres tinham que ser independentes e fortes, por isso sempre incentivou eu e a Carol sermos bem independentes. Nos ensinou a trocar pneu de carro para não depender de ninguém, a consertar a bicicleta, e vivia colocando a gente para tirar braço de ferro com os amigos do meu irmão. Ele dizia que o mais importante na vida era ter liberdade e de fato foi um pai muito carinhoso que nos deu abertura para fazermos nossas próprias escolhas. Nunca me lembro de ter apanhado do meu pai ou dele ter gritado conosco. Quando ficava bravo, a forma de se expressar era se recolher e argumentar conosco. Eu era considerada a filha mais difícil, mas só porque eu era muito franca e teimosa quando queria alguma coisa. O papai chegou a classificar o gênio das pessoas da família “ Em primeiro lugar, o melhor gênio era o da minha māe, muitos cavalos de luzes à frente, depois o do Alexandre, depois a Carol, depois ele mesmo e por último era eu! Até hoje achamos graça disso! O mais incrível de tudo foi que depois que mudei para os EUA no ano 2002, nos aproximamos mais ainda, eu praticamente falava com o papai todos os dias, assim como falo com minha māe. Quando ele descobriu que estava com leucemia (LLC), comecei a pesquisar a doença e médicos para ele se tratar, utilizando um network aqui nos EUA para entender qual seria o melhor tipo de especialista. Passei a ir em reuniões semanais do Life with Cancer do grupo de Leucemia. Passei a ajudar meu pai a se preparar para todas consultas sugerindo perguntas e revisando seus exames e até enviando e-mail ao médico dele. Conversávamos muito e eu queria que ele vivesse bem e positivamente. Cheguei a reunir em casa para um jantar um casal que o marido tinha o mesmo tipo de leucemia para ele entender que ele poderia viver bem. Aqui nos EUA é muito comum a formação de grupos para dar apoio às comunidades locais. O papai passou também a frequentar a ABRALE no Brasil, ( Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia) participando de palestras. Durante esses anos, as vezes recebia ligação de minha família no Brasil pedindo para eu conversar com o papai, pois eu era a única que ele escutava, o que para mim era engraçado, depois do meu gênio ter sido classificado como o pior da nossa família. Perder o papai foi a pior dor que já senti na vida, principalmente pelo fato de ver a metamorfose do cancer nos seus estágios finais. O sentimento de incapacidade ao deixá-lo na UTI foi absolutamente o mais vazio e perverso. A vida por alguns momentos perdeu o sentido. O único alívio que deu foi ver o ente querido parar de sofrer. Mas como poderia a vida continuar? Depois de 2 anos sem sua presença muito aconteceu. Uma nova paisagem foi se formando, esse processo ainda está acontecendo. Relacionamentos foram sendo reestruturados, a família foi se reequilibrando, o corpo e alma padeceram pelo vazio deixado. Aos poucos com orações e pessoas queridas que nos cercam, aquele desespero foi se transformando lentamente em esperança de dar à vida um significado de aprendizado e do papai estar em outra dimensão de luz, continuando sua jornada misteriosa. Para nós que aqui ficamos, nossa missão é transformar a dor da saudade em lembranças felizes e continuar o legado iniciado pelo papai com as gerações futuras de nossas famílias: “ O cultivo da amizade entre irmāos, a importância do aprendizado, da liberdade, da independência feminina e do apoio familiar” Pai te amamos muito fique na luz!